terça-feira, 2 de novembro de 2010

modo rua


Ele ouviu a vida inteira de todo mundo que seria apenas uma fase. Mas a fase cresceu, amadureceu, e ele fez a diferença!
Ser sempre o rebelde da família, o estranho do trampo, o genro indesejado e motivo de confusões a troco de nada eram detalhes normais para ele. Dudu se acostumou com os preconceitos desde que passou a se descobrir na ideologia punk. A paixão começou com uma galera nova, um galão de vinho e discos antigos, dentre eles The Clash, New York Dolls e Sex Pistols. Logo percebeu que haviam mais alguns como ele, diferentes do padrão.
Sua adolescência foi uma aberração à parte. Os primeiros visuais chocavam a todos e o colocavam em primeiro lugar no ranking das reuniões de família de Natal. Alargadores, moicanos de meio palmo, roupas rasgadas e cabelos de todas as cores devido à descolorações e tintas com materiais de origem suspeita. Colava com gente como ele, que não se importava em virar noites na rua e fazer malabarismos nas calçadas pra descolar a grana da birita.


Nos shows, só podia andar de grupo, pois as confusões eram muitas entre as galeras de outras vertentes. Dudu estava habituado a viver à margem da sociedade. Sua natureza era tranquila, mas o comum não lhe interessava. Curtia as bandas que poucos conheciam, frequentava locais vistos como "podres", lia obras de pensadores antigos, e vez ou outra se arriscava a discutir política. Não gostava da direita nem da esquerda. Achava que comunismo e socialismo eram apenas formas utópicas do ser humano pensar em comandar.
Seu pensamento libertário porém pé no chão lhe transformava numa espécie de anarquista moderno. Não julgava ninguém, tampouco se interessava em escutar críticas. Chegou ao ponto em que os preconceitos lhe entediavam ao extremo.

Não era respeitado nem desrespeitado como pessoa, mas mal visto de modo geral. Uma figura diferente, um estranho no ninho aonde quer que fosse, e toda a sua graça era essa. Vivia o modo rua com toda a intensidade. Via a família algumas vezes por semana para dormir numa cama quente e vez ou outra se divertir com a bronca ressentida dos pais. Só se envolvia com garotas punks, não por ter cabeça fechada, mas sim para manter sua busca de identidade própria. Sentia-se bem com pessoas como ele.
A verdade é que mesmo com o preconceito vindo dos outros, ele se divertia muito, seja pagando moshs nas rodas punks, se defendendo de brigas com grupos rivais ou pegando o metrô só pra chocar as pessoas. Não conseguia se imaginar de outra maneira, mesmo que muitos insistissem que esse 'lance punk' fosse apenas uma fase passageira.

Era um cara feliz. Se ele cresceu?
Sim, ele cresceu, se formou no ensino médio, conseguiu emprego de meio período e nas horas livres ensaiava na sua banda, na qual era baterista. Nunca precisou tirar um brinco para arrumar trabalho. Apesar do jeito aparentemente rude, era responsável e criativo. Com o tempo, conquistava espaço. Todos os finais de semana tinham shows marcados, até ficarem conhecidos como uma banda underground de respeito nos outros estados. Suas letras falavam exatamente do dia a dia na subcultura, da aversão das pessoas ao novo, ao diferente, ao subversivo. Escrevia verdadeiras poesias em forma de punk rock. Saiu de casa, começou a se virar sozinho, e aos poucos, a evoluir como ser humano sem perder sua verdadeira essência.


Então Dudu se viu com 30 anos, com uma barbicha safada que cultivou por mera preguiça, sentado em seu sofá de couro, no apartamento finalmente quitado, esperando a esposa terminar o jantar. Com orgulho, deu uma olhadinha da porta para o filhão, agora com 5 anos, dormindo feito anjo naquele quarto decorado com posteres dos Ramones e The Casualties. Sorriu feliz. Teve certeza de que a vida inteira soube ser ele mesmo, sem precisar forçar absolutamente nada, pois as coisas foram acontecendo. Grandes amigos sairam do movimento, mudaram de estado, ou simplesmente largaram o modo rua de viver. Ele não. Não era questão de ser melhor ou pior por isso, mas restava a sensação gostosa de que a busca por sua identidade não estava no fim. Ela estava mais viva do que nunca. Mas ele nunca precisou abrir mão dos sonhos. A banda ia bem, no trabalho estava estabilizado, seu casamento era uma maravilha.

Ligou o som baixinho para não acordar o filhote, encostou-se na janela, e de lá observou o caótico mundo de camelôs, trausentes, paradas de ônibus lotadas e cachorros com seus respectivos donos dominando as ruas. Lá entre os estudantes de cursinho, os casais apaixonados, os trabalhadores chegando cansados do serviço, lá longe, se aproximava um grupinho de quatro garotos esquisitos de cabelos esquisitos com baquetas, mochilas e sacolas com garrafas de cachaça, atravessando a rua. Dudu sorriu, como se estivesse revendo uma cena de quinze anos atrás. Sentiu-se feliz por haver diferença no mundo. Como seria chato se não houvesse oposição, se não houvesse gente careta, se não houvesse roqueiros, pagodeiros, clubbers e góticos por aí. Como era bom saber que ainda existiam os pequenos grupos, que não deixavam os estilos morrerem.
Apagou o cigarro sorrindo enquanto sua esposa o abraçava por trás. Sorriu satisfeito pois, apesar de tudo que viu, ouviu e sentiu na pele, era a prova viva de que a fase nunca passou!

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